segunda-feira, 12 de março de 2012

A Tragédia do KE 007


Pra quem tem menos de 20 anos hoje é difícil entender o medo constante vivido durante a Guerra Fria, quando o mundo era polarizado entre quem estava do lado dos americanos e quem seguia a União Soviética. O dualismo era entre OTAN X Pacto de Varsóvia, o bem contra o mal, explícito em filmes como Rambo II ou Rocky IV, dentre outros.

Durante os mais de 40 anos de Guerra Fria, viviamos sempre na iminência de alguém, em Washington DC ou Moscou, apertar um botãozinho e o mundo se acabar (vide “O Dia Seguinte – The Day After, filme de 1983).

Pois bem, na década de 80 ocorreu um fato que só reforça essa fragilidade e a banalidade da vida humana. Em 1º de Setembro de 1983 aconteceu umas das maiores tragédias da aviação. Um Boeing 747 da Korean Airlines com 269 pessoas a bordo foi derrubado por um caça soviético.

O voo KE-007 fazia a linha Nova York – Anchorage – Seul. Naquele fatídico 1º de setembro a aeronave era um Jumbo 747-230B, fabricado em 1971 (prefixo HL7442, anteriormente D-ABYH, da Condor Airlines). O jumbo decolou do aeroporto internacional John F. Kennedy (JFK) em Nova Iorque em 31 de agosto com 240 passageiros e 29 tripulantes. Entre as vítimas estavam coreanos, tailandeses, japonses, filipinos e americanos. Dentre estes, estava também o deputado americano Lawrence McDonald, 48 anos, presidente da John Birch Society, que pretendia participar das comemorações do armistício que pôs fim à Guerra da Coréia, trinta anos atrás.

A 6.000 quilômetros de Anchorage, algumas centenas de pessoas haviam acordado cedo para aguardar a chegada do vôo 007 no Aeroporto Internacional Kimp’o, em Seul, às 6 horas da manhã. O boeing jamais chegou. Para os familiares era como se fosse um filme que estava apenas começando. O mundo fora tomado de perplexidade. Manifestações de incredulidade e perplexidade vinham de todos os lugares. A indignação tinha um motivo muito forte: “o crime cometido nos céus, contra um avião comercial incapaz de se defender, pela União Soviética’’, como relatou a Veja na época.

Naquele momento, os Estados Unidos e o Japão, gradualmente, forçaram o vazamento de dados comprometedores para que o Kremlin se pronunciasse a respeito do trágico fim do voo 007 da KAL. Todavia, o governo soviético preferiu o silêncio ao invés de esclarecimentos coerentes. O primeiro comunicado só ocorreu 23 horas após o incidente e foi divulgado pela agência soviética TASS. Nele, Moscou admitia que tinha enviado caças com o intuito de interceptar um "avião intruso" que violara seu espaço aéreo, porém não mencionara se havia atacado ou derrubado o avião coreano. Ao invés disso, apenas limitou-se a dizer que a aeronave, não identificada, "não respondeu aos sinais de advertência dos caças soviéticos e continuou seu vôo na direção do mar do Japão", conforme publicado na Veja.

Vinte e quatro horas depois do primeiro comunicado, a TASS emitiu uma nota em que dizia que o piloto do caça havia tentado manter contato com o jumbo usando sinais internacionais, seguidos de tiros de advertência com balas luminosas. Ainda segundo a nota, o avião intruso deixou o espaço aéreo soviético, rumando em direção ao sul, desaparecido a partir daí. Um detalhe curioso: no último parágrafo da nota, um resumo de como era a relação entre os dois principais atores da Guerra Fria. Os soviéticos atacaram os "interesses propagandistas" dos EUA e fizeram insinuações de espionagem, terminando o comunicado lamentando a perda de vidas humanas.

Eram 1 hora da manhã, hora coreana, quando o Jumbo começou a ser rastreado por radares soviéticos, ao entrar no espaço aéreo da Península de Kamchatka, na URSS. Às 2h10, o comandante Chung Byung-In comunicou à torre do Aeroporto de Tóquio, ponto de contato obrigatório depois de Anchorage: "Passamos bem ao sul de Kamchatka. Rota descrita como normal". Às 3h12, o piloto do caça soviético avisou sua base de que havia feito contato com o avião e mencionou que via as luzes de navegação do aparelho intruso. Três minutos mais tarde, o vôo 007 pediu permissão à torre de Tóquio para subir para 35 pés. Às 3h20 veio a resposta: "Confirmado, suba para 35.000 pés". Às 3h21, falando com sua base, um dos pilotos soviéticos que acompanhavam o Boeing coreano notificou sua altitude. Às 3h23, a torre de Tóquio ouviu a última palavra do piloto coreano, em que ele parecia começar a se identificar: "007", ecoou a voz, seguido se sons de estática.

Exatos três minutos depois, o piloto soviético informou que havia lançado um foguete e destruído o alvo. Às 3h27, o Aeroporto de Tóquio ouviu estática incompreensível do Jumbo e, em seguida, silêncio. As 3h30 o radar de Tóquio registrou uma queda de 5.000 metros na altitude do Jumbo e, por fim, às 3h38 o avião desapareceu dos vídeos do radar japonês. Às 4h30 da madrugada, quase 1 hora após o disparo, a base soviética notificou que estava enviando vários aviões e navios para uma "missão de busca e salvamento" na região.

É intrigante o fato de que as companhias aéreas que faziam essa rota dispunham de mapas fornecidos pelos EUA e que alertam aviões de que se violarem o território fechado para navegação podem ser atacados sem aviso prévio. Como o Jumbo coreano conseguiu desviar-se de sua rota normal, inadvertidamente, em até 500 quilômetros? Não há explicação fácil. Anchorage, escala do Jumbo no Alaska, está ligada a Tóquio e Seul pela rota aérea chamada North Pac, ou Romeo 20 no jargão dos pilotos, de 80 quilômetros de largura e dividida em cinco corredores com alturas variáveis. No voo fatídico, o jumbo coreano estava utilizando o corredor mais próximo do espaço aéreo soviético, a apenas 24 quilômetros de distância das fronteiras da URSS naquela região.

Quando um avião sai de Anchorage, os radares da Administração Federal da Aviação Civil dos EUA e a Força Aérea americana seguem seu curso na direção sul pelos primeiros 300 quilômetros de voo. Sempre que estes radares detectam desvios do avião na direção da fronteira russa, eles o avisam, por rádio. Além dos 300 quilômetros iniciais após a escala no Alasca, os aviões passam a depender de seus próprios instrumentos de navegação, fazendo contatos freqüentes por rádio com Anchorage, até a metade do caminho, e com a torre de controle do Aeroporto de Tóquio, na metade restante.

Segundo o último contato de rádio com os controladores de Anchorage, o voo 007 transcorria normalmente. A Agência de Defesa do Japão, entretanto, afirma que seu radar já mostrou o Boeing coreano sobrevoando a secretíssima base soviética de PetropavIovsk, na península de Kamchatka, e atravessando a Ilha Sacalina, a centenas de quilômetros oeste da faixa R20, antes de ser derrubado. Durante toda a semana do incidente, não houve qualquer sinal de que Anchorage ou Tóquio tivessem tentado contactar o piloto para avisá-lo de seu desvio de rota, nem indicações de que o piloto tivesse pedido ajuda ou soasse algum alarme.

É interessante notar que, em abril de 1978, fazendo o mesmo voo 007, um Boeing 707 da mesma empresa coreana com 110 passageiros a bordo desviou-se tanto que penetrou 100 quilômetros no território soviético, chegando perto de Murmansk. Imediatamente o avião foi interceptado por caças soviéticos que, segundo relato dos passageiros, fizeram uma longa série de sinais de advertência antes de atirar contra a fuselagem e obrigá-lo a descer, provocando a morte de dois passageiros. Alguns oficiais da US Air Force, já haviam demonstrado preocupação com a suposta ‘’falta de cuidado com que os pilotos coreanos se comportam quanto voam perto do espaço aéreo soviético’’.
O fato é que no incidente de 1983 não houve nenhum indício de que os russos tiveram a intenção de advertir o jumbo coreano ou solicitar, mediantesinais convencionais, que pousasse ou mudasse de rota. Segundo relatado pela Veja na época, em um trecho da conversa do piloto russo com a base, o ''alvo não consciente de que está sendo seguido, continuamos seguindo". No momento do disparo havia nuvens no céu, e era uma noite escura, sendo que os soviéticos estavam seguindo o jumbo há mais de 2 horas com oito interceptadores, tempo suficiente para se fazer advertências.

Vale lembrar que a antiga União Soviética, junto com outros 150 países era signatária do Acordo Internacional de Aviação Civil, que prescreve procedimentos muito claros em caso de violação de espaço aéreo. Por eles, o interceptador deve alcançar o avião intruso por trás, em seguida passa à sua direita e tenta comunicar-se por rádio. Se não houver resposta ou for impossível um entendimento, ele deve passar à esquerda, balançar as asas, inclinar-se, baixar seu trem de aterrissagem e, se estiver escuro, piscar todas as luzes de navegação e de pouso de seu aparelho. Este conjunto de sinais significa que o avião intruso deve acompanhar o interceptador e aterrissar na pista que lhe for indicada. Se ainda assim o intruso não atender às instruções, o caça poderá dar tiros de advertência ou fazer-lhe manobras à frente, obrigando-o a descer. O país invadido pode derrubar o invasor se nada disso funcionar e se houver "condições extraordinárias" - como suspeita de espionagem, o que estava completamente fora de questão.

Os soviéticos sempre tiveram preocupação com invasões de seu espaço aéreo na rota transpolar. Para se ter uma idéia, partes importantes de seu sistema de defesa concentraram-se naquela área. O dispositivo militar na região oriental chegou a envolver um terço da força de defesa soviética. Outro dado relevante é o fato de que o número de aeronaves em operação chegou a incríveis 1.700, sendo que a base da Ilha Sacalina chegou a ter 20 mil homens.

Com o passar do tempo, a tragédia foi caindo no esquecimento tanto pela mídia como pelos meios diplomáticos, políticos e militares, menos para os parentes das 269 vítimas do voo KE 007.

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